sábado, 4 de outubro de 2014

Na maioria do tempo eu acho que só queria sentir algo. Um medo. Uma vontadezinha de chorar até soluçar ou de rir até perder o ar. Mas não há nada. Só há pequenas nostalgias que não podem ser chamadas de emoção. Teria meu coração congelado para sempre?
Quando eu acordei sozinha não tive medo, pela primeira vez minha consciência estava limpa. Não estava envolvendo ninguém num drama que é meu. Fiquei ali, deitada olhando um incenso queimando. Mas eu sabia que quando ele parasse de sofrer ele seria feliz. E eu? Ninguém jamais ficaria em tempos tão ruins como ele ficou. Mas poderia eu fazê-lo feliz?
Me sinto vazia, cinta e fria e não há nada que ele possa fazer pra mudar isso, nem haverá. Ás vezes consigo acreditar que meu coração é só um pedaço de mármore. De qualquer forma eu não sofri nenhuma ausência naquele dia, a não ser a minha, mas com essa eu já me acostumei há muito tempo. E as horas seguem passando (...)
Cedo ou tarde uma jovem sorridente cruzará o caminho dele.
Talvez já tenha cruzado mas ele não tenha se permitido vê-la.
A ideia de outra pessoa me enlouquece. É sábado. Sábado é um dia propício pra conhecer pessoas.
Mas eu sinto pela primeira vez que fiz a coisa certa. Não posso condenar um anjo a uma vida no inferno.
O que mais dói é o esquecimento.
Saber que ele vai esquecendo com o tempo pequenos momentos incríveis e simples que passamos. As tardes e noites que passamos deitados nos empanturrando de pipoca e vendo filmes. Que vai esquecer dos banhos que tomamos juntos e de como eu gostava de quando ele lavava meu cabelo. Ou dos passeios que fizemos, que darão lugar a novos passeios com novas pessoas. Saber que ele vai esquecer o som do meu riso e do meu gemido, mas que eu não esquecerei o dele. E que isso é justo. Saber que meu nariz vai esquecer do cheiro do almíscar misturado com o suor dele e Deus, o suor dele é tão bom. Por que eu não consigo aceitar que ele fique aqui até minha próxima crise?
Preciso ser forte como nunca fui.
Eu sou um lobo em pele de cordeiro que se recusa a comer a ovelha. Quando a ovelha me olha com seus olhos alaranjados eu paraliso e me esqueço de quem sou. E ela se torna meu predador. Mas até quando duraria meu disfarce?

quarta-feira, 1 de outubro de 2014


TABACARIA (TRECHO) - Álvaro de Campos


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


(...)

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas
-Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(...)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

(...)